Kampot não estava nos nossos planos originais. Mas eu cometi um erro. Um grande erro com pouca influência no nosso plano final. Estávamos em Phnom Penh prontos para comprar o bilhete do autocarro para o Vietnam quando me apercebi que o visto não seria obtido na fronteira e precisava de o pedir numa embaixada ainda no Camboja. Isto significou que teríamos de passar pelo menos mais dois dias no Camboja enquanto esperávamos que o visto ficasse pronto. Como já estávamos em Phnom Penh há 4 dias e queríamos sair de lá (vejam aqui porquê), decidimos ir até Kampot mais a sul e esperarmos lá. Ficamos surpreendidos com o sítio e gostamos tanto que acabamos por ficar lá 6 dias. Apaixonamo-nos por Kampot. Acredito que acontece sempre quando menos se espera.
Vida em família
Chegamos a Kampot já ao cair da noite. A paragem do autocarro fica perto do centro da cidade pelo que seguimos imediatamente a pé à procura de um quarto barato. Depois de termos estado em cinco ou seis hotéis diferentes onde não pudemos ficar ou porque estávamos cheios ou porque eram demasiado caros para o nosso bolso lá encontramos o nosso quarto. Não era um hotel nem uma guest house mas uma casa particular onde a família tinha posto uns quartos a render.
A família era composta por um casal e duas filhas com idades entre os 15 e os 18. No rés-do-chão, aberto para a rua, ficava o quarto onde passavam todo o seu tempo. Tinham umas prateleiras com medicamentos a que chamavam de farmácia e este era o seu principal negocio. O que me espantou e me levou a querer escrever sobre eles foi o estilo de vida que levavam.
Estivemos em casa deles por 6 dias pelo que o pudemos observar em primeira mão. Eles passavam o dia sentados no chão em frente ao televisor. Acabavam de comer e dormiam uma soneca, os 4, quase encavalitados uns nos outros. Uma das filhas não tirou o raio do pijama a semana inteira. Se estavam a dormir quando nós passávamos por eles ou alguém precisava de alguma coisa da farmácia abriam um olho para perceber se precisavam de se levantar e rapidamente resolviam o que quer que fosse e voltavam para a sorna. Era até relaxante vê-los sempre todos juntos como se fosse a coisa mais natural do mundo e sempre dispostos a ajudar no que fosse preciso. A Magda sentiu-se um pouco doente enquanto lá estivemos, com febres e dores de cabeça e o homem da casa, o “médico” preparou uma serie de comprimidos que acabaram por resultar em pleno. Estávamos um pouco preocupados que pudesse ser alguma coisa mais séria como por exemplo malária mas o “médico” pôs a mão na testa da Magda e disse:”Não é nada”! Foi óptimo conhece-los e temos pena de não termos uma única foto deles para partilhar.
Kep, Parque Nacional e Camboja rural
Alugamos uma mota e fomos até Kep, cidade à beira mar a cerca de 20 km de Kampot. O percurso até lá é lindo. Faz-se primeiro por uma estrada alcatroada e por entre muitas barraquinhas/lojas de tudo um pouco até se entrar numa estrada de terra batida larguíssima, que parece estar pronta a receber a mais moderna das autoestradas. Visitamos um templo escondido na montanha vizinha à cidade e a motinha lá foi aguentando, mas cada vez a queixar-se mais e mais.
A praia de Kep propriamente dita não é a mais bonita que vimos. As areias são escuras. No entanto a praia não é muito requisitada pelo que é um bom sítio para relaxar um pouco sem muita azafama. Ao longo da costa há passeios largos com estátuas grandes aqui e ali.
Kep é conhecido pelo seu marisco e visitamos o mais famoso mercado mesmo em cima da praia. Dezenas de mulheres vendem todo tipo de peixes e mariscos acabados de pescar e em alguns caso, cozinhado logo ali e pronto a comer. Uma delicia.
Na sua proximidade podemos visitar o Parque Nacional que tem um percurso de 8 km para se fazer um trekking mas que é também acessível a bicicletas e motas. A motinha ainda se mexia bem pelo que fizemos caminho todo sem problemas. Há alguns pontos ao longo do percurso com miradouros interessantes.
A caminho de Kampot, fizemos um desvio numa das muitas estradas de terra que iam aparecendo à nossa esquerda e não podia ter corrido melhor. Demos connosco no meio de imensos arrozais, onde o verde vivo das palmeiras e plantações contrastavam com o castanho das estradas em terra viva. Estas eram as cores que vimos vezes sem conta em outras fotos antes de partirmos para o Camboja. Ali estávamos finalmente.
Bokor e o problema com a mota
A cerca de 40 km a oeste de Kampot, podemos encontrar Bokor, um antigo resort colonial francês de inícios do séc XX. Fica no topo de uma montanha com uma elevação superior a 1000 metros e foi a subir que a mota começou a dar verdadeiros problemas. Parecia falhar cada vez que acelerava a fundo pelo que tivemos que fazer os quase 20 km de subida a pique sempre a 15 ou 20 km/h. Sim, demorou imenso tempo a lá chegar. À medida que íamos subindo, o frio impunha-se cada vez mais e não estávamos preparados para isto. Tínhamos apenas os nosso impermeáveis que não ajudam muito contra o frio.
A estrada é imaculada. Totalmente nova e asfaltada do inicio ao fim. De entre as coisas que se podem ver lá em cima está cascata Popokvil que por esta altura tinha um caudal que merecia bastante respeito.
Pelo topo de Bokor, parece que estamos metidos algures numa qualquer vila soviética de testes nucleares abandonada à pressa. Percorremos kms de estrada para chegar de um ponto de interesse ao outro e parecia que poderíamos estar em Marte. O tempo cinzento e enevoado ajudaram a esta sensação. Um pouco depois começou mesmo a chover. Refugiei-nos no primeiro edifício aberto que encontrei. Entramos numa garagem onde os tipos da manutenção de uma estação eléctrica esperavam por qualquer problema para actuarem. Rapidamente nos convidaram para beber um chá com eles e ali ficamos uma hora enquanto esperamos que o tempo secasse. Antes de iniciarmos a descida ainda fomos até ao Casino que foi abandonado por algumas ocasiões e que tentam agora trazer de novo ao activo. Parece mesmo um vilarejo fantasma.
A mota tanto ameaçou que nos ia deixar ficar mal que acabou mesmo por acontecer. Mas fico-lhe grato por ter esperado que começássemos a descida. A pouco mais de um km de descida, não ia de punho a fundo, senti qualquer coisa a partir dentro da mota e o acelerador deixou de estar ligado à roda. Tinha-se partido a correia de distribuição. O motor funcionava às mil maravilhas mas era igual a que não funcionasse. Foi das melhores viagens da minha vida. Cerca de 15 km sempre a descer com a mota desligada e o vento a passar-me nas orelhas. O frio imenso que havíamos sentido lá em cima ia-se dissipando e transformando num calor agradável. Sabia que assim que a descida acabasse ia ter problemas com calor de novo pois ia ter que empurrar a mota até ao mecânico mais próximo. Mas não deixei que isso atrapalhasse a sensação de gozo que tive naquela descida. Uma estrada completamente nova e uma descida acentuada de muitos kms e nós sempre a deslizar… Assim que chegamos a uma reta, já quase na entrada, onde se pagam os bilhetes para entrar em Bokor, um local disse-me que teria um mecânico a cerca de um km em direcção a Kampot. Nada mau considerando que era sempre plano.
Finalmente encontramos a “oficina”, mostrei o problema ao homem e ele sacou de uma correia nova e pôs mãos à obra. Reparei que o modelo no saco da correia não correspondia ao da minha mota apesar de serem ambas da mesma marca. Disse através de gestos ao mecânico que me respondeu que seria igual. Tudo bem. Ele é que é o profissional. Depois de quase três horas à espera que mudassem a correia, pois sempre que ligavam a mota percebiam que havia algum problema e tinham que fazer tudo de novo, lá me disse que estava pronta. Paguei-lhe os dez dólares combinados e montei a mota. Não se mexia. A correia devia estar larga e não arrancava. Tentei explicar isto ao mecânico que me disse que assim que começasse a andar conseguiria ir até Kampot, não podia era parar pelo caminho. Fiquei chateado com o gajo porque tinha-lhe dito desde o inicio que aquela corrente não era a correcta. Enquanto estávamos para ali a discutir entre gestos e tentativas frustradas com palavras atiradas ao ar, apareceu uma miúda que finalmente nos podia traduzir. Ele não quis admitir que tinha posto a corrente errada e disse-lhe que não se importava que eu pagasse apenas 5 dólares se ficasse com aquela. Aquilo perturbou-me. Senti-me enganado. Disse-lhe para nem pensar. Prefiro levar a mota à mão até “casa” e entrega-la ao dono e ele que faça o que entender com ela. Enquanto o mecânico se preparava para tirar a correia da mota, a Magda disse-me que tinha percebido aquilo tudo de outra maneira. Que o gajo tinha dito que, não tendo a correia original, não se importava que eu ficasse com aquela por metade do preço e poderia assim pelo menos voltar a Kampot a conduzir.
Reflecti um pouco e voltei atrás no que tinha dito. Pedi-lhe desculpa e aceitei o que me tinha proposto. Mesmo assim saí dali chateado porque perdemos mais de três horas para nada e se ele me tivesse dito desde o início nunca teria aceitado. Tivéssemos nós alugado uma Honda e isto nunca seria um problema pois há peças sobresselentes de scooters Honda por todo lado mas calhou-me uma Suzuki na rifa. Lá montamos a malograda scooter e empurrados por ele começamos a viagem. Fez-se bem, apesar de a cada cruzamento, buraco ou curva saber que podia ter corrido mal e ficar apeado mas chegamos. Explicamos ao dono que se riu da situação e disse que não sabia como isto não tinha acontecido há mais tempo…Não me cobrou nada pela correia que iria ter que comprar.
Kampot
Kampot é uma cidade pequena à beira rio com 40 mil habitantes. É uma cidade muito tranquila e onde o tempo parece não querer passar. Perto da rotunda Durian, o centro de Kampot, encontra-se um pequeno mas agitado mercado nocturno que mais parece uma festa popular. Tem alguns carrosséis para os mais novos e algumas barracas com roupas falsificadas e bugigangas.
Há alguns bares e hotéis em algumas das ruas mais animadas perto do rio mas a vida agitada acaba bastante cedo. A ponte antiga, perto do mercado central está encerrada a veículos mas continua a servir as pessoas que a atravessam a pé.
Kampot é simples e como cidade tem pouco para ver mas tornou-se num sítio quase mágico para nós. Alguma coisa nos prendeu ali e não nos queria deixar sair. Talvez tenham sido as pastelarias francesas, as pessoas fantásticas, o ambiente tranquilo ou a proximidade com o Camboja rural. Kampot não estava planeado e tornou-se na nossa melhor recordação do país.
Renato
Mais fotos do Camboja aqui.